Não sei exatamente que dia era quando recebi o resultado das análises aos ácidos biliares. Sei que era um dia de semana e que eu tinha estado na praia durante uma parte da manhã. Lembro-me de ligar ao meu pai no caminho para casa; lembro-me de lhe dizer que achava que a comichão estranha que havia sentido dias antes já teria passado e que, provavelmente, seria só fruto da minha ansiedade. Era improvável ter uma colestase obstétrica. Até então, a gravidez tinha sido normal e eu sentia-me bem, era saudável. Só tinha de conseguir relaxar.
Por algum motivo, sempre que pensava no momento em que iria receber o email do laboratório de análises, desejava estar em casa, ao pé do Jaime; Deus quis que assim fosse. Já em casa, no sofá, abri o email e, assim que o li, senti que o ar não passava pela minha garganta. Essa sensação durou menos de um minuto. Ultrapassado o choque - ou, melhor dizendo, empurrando o choque para debaixo do tapete, gesto que voltaria para me assombrar mais tarde -, era o momento de agir. A obstetra que me acompanhava desde o inicio da gravidez mal havia decorado o meu nome, de tão ocupada que era, e de tão banal a minha gestação parecia ser. Depois de uma rápida conversa ao telemóvel, eu e o Jaime percebemos que precisávamos de encontrar outra médica; esta não era a pessoa que eu ia precisar dali para a frente. Iniciámos uma série de contactos com familiares e amigos, mas estávamos a meio de Julho, eu tinha mais de 35 semanas de gestação, e os bons médicos estavam todos com agenda cheia.
Fomos passar uns dias a Montargil, umas férias que havíamos marcado meses antes, longe de imaginar que alguma coisa poderia correr mal até lá. Do quarto de hotel onde ficámos hospedados, olhava para o grande lago de águas paradas que rodeava o empreendimento e pensava no quão rapidamente as coisas podiam passam de doces a trágicas. Tentava afastar pensamentos horríveis sobre a possibilidade de perder a bebé, mas em vão. Cada pontapé dela era sentido com um imenso alívio. Chorei mais nessa semana do que no conjunto dos últimos anos. E, sobretudo, senti-me um falhanço; como mulher e como mãe. O meu corpo havia vacilado, logo agora que um outro ser humano, e um não pouco importante, dependia dele.
As análises aos ácidos biliares precisavam de ser repetidas. A cidade mais próxima de Montargil com um laboratório como o que precisávamos ficava em Santarém, a mais de uma hora de distância. Saímos pouco depois das seis da manhã e vimos o nascer do sol do carro. Os meus números eram ainda bastante baixos e, agora olhando para trás, com mais conhecimento sobre esta condição, que só se desenvolve na gravidez, e que se cura como por magia após o parto, percebo que a bebé nunca esteve verdadeiramente em perigo (há diferentes níveis de colestase e o meu era ligeiro), mas na altura eu não conseguia ver isto. Cada análise era vivida com uma avalanche de ansiedade e de medo e foi assim quase até ao parto.
Continuávamos sem obstetra. Ou antes, tínhamos a minha obstetra, que entretanto se esquecera de que eu estava com uma colestase e que não respondia a mensagens ou atendia telefonemas. A ideia era ter o parto com ela apenas em último recurso, mas o último recurso parecia cada vez mais provável. Até que chegámos, não por milagre, mas graças à bondade de uma pessoa muito querida, a quem estaremos para sempre gratos, à Mariana. Evitámos alimentar expectativas em torno da possibilidade da Mariana aceitar acompanhar-nos até ao parto, porque sabíamos qual era a sua agenda. Quando, no fim da consulta em que finalmente a conhecemos cara a cara, ela nos disse que podíamos ficar com ela, o ar que uma semana antes parecia não passar na minha garganta, de repente, passou; e, com ele, a capacidade de voltar a ter esperança de que tudo fosse correr bem (não é de ânimo leve que digo que, infelizmente, quase até ao fim, sem que eu o pudesse controlar, era dominada por pensamentos doentios sobre poder nunca vir a conhecer, com vida, a minha bebé. Se estou a escrever isto no sofá, a centímetros dela, enquanto a mesma dorme tranquila e serena, devo-o à Mariana e ao conjunto de profissionais inexcedíveis que trabalha na maternidade da CLISA).
O parto
Com a colestase, sabíamos que o parto teria de ser induzido até às 39 semanas. O meta-estudo mais recente sobre a condição mostra que, para grávidas cujos ácidos biliares nunca ultrapassam os 100, é seguro levar a gestação quase até ao final - nós sabíamos isto porque havíamos lido tudo o que havia online sobre a doença, mas a Mariana passar-nos-ia exatamente esta mesma informação na primeira consulta que tivemos. Os meus valores ficaram sempre bastante longe do limite dos 100 (o máximo até onde chegaram, em não-jejum, e, portanto num pico, foi 39), mas gerir a minha ansiedade começou a tornar-se num problema quase tão grande quanto o de ter de monitorizar a condição. Assim, no dia do CTG das 37 semanas, conversei com a Mariana sobre a possibilidade de induzirmos o parto mais cedo, perto das 38 semanas, e fui acolhida com toda a compreensão e apoio possíveis. Sentia-me culpada - a culpa, entretanto, é um sentimento que, percebo agora, anda de mãos dadas com a maternidade, nunca uma sem a outra - por não conseguir gerir as minhas emoções até ao máximo temporal possível, porque obviamente que sei que quanto mais perto da data prevista de parto nascer a bebé, maiores são as suas chances de não precisar de qualquer ajuda à nascença. Mas, da Mariana, não recebi qualquer julgamento, pelo contrário. Sempre senti que, para ela, ao mesmo nível de importância da segurança da bebé, estava o meu bem estar - ao mesmo nível, não atrás. Marcámos a indução para Quarta-feira, dia 4 de Agosto de 2021. Nessa manhã fui uma última vez à praia, ainda não passavam das 8.00h. Caminhei e dei um último mergulho. Tirei uma fotografia à minha barriga, conversei com a bebé, pensei que aquele seria um dos últimos momentos com ela dentro de mim.
Almoçámos no Colombo - eu comi uma salada do Go Natural, algo de que me arrependi bastante mais tarde, quando percebi que não podia comer quase nada durante o trabalho de parto :D - e, calmamente, dirigimo-nos para a CLISA, já perto das duas da tarde. Demos entrada pouco depois. O nosso quarto era amoroso, com uma grande cama para mim e outra para o Jaime. Tirámos algumas fotografias, ainda dominados pela adrenalina de saber que, talvez daí a umas horas, uns dias no máximo, a vida mudaria para sempre. Na CLISA, todo o medo que havia sentido, de forma constante, ao longo das semanas anteriores, desapareceu. Senti-me dominada por uma enorme serenidade e paz. Acreditava finalmente que iria conhecer a minha bebé, viva, saudável. Permiti-me pela primeira vez sonhar com esse momento. Imaginei-a nos braços do Jaime, ele que tinha acompanhado a gravidez quase inteira do lado de fora, em salas de espera e parques de estacionamento.
O primeiro comprimido para induzir o parto foi dado por via vaginal pela Mariana. Conversámos sobre os possíveis caminhos a tomar ao longo das horas seguintes - um reforço do comprimido quatro horas mais tarde, e ainda um outro quatro horas depois. Iríamos manter uma atitude expectante, respeitando o meu corpo e tentando que o processo fosse o menos violento possível tanto para mim quanto para a bebé. Uma hora depois, as primeiras contrações começaram a aparecer e evoluíram tão rapidamente que decidimos não fazer um reforço durante a madrugada e esperar.
Por volta das oito da manhã as contrações haviam acalmado um pouco; conversámos com a Mariana, fizemos um toque vaginal, percebemos que eu estaria com 2 para 3 dedos de dilatação, e decidimos fazer um reforço da indução (não sei os nomes das hormonas que foram utilizadas, mas apenas por esquecimento - a Mariana e as enfermeiras que nos acompanharam explicaram-me sempre tudo o que estava a acontecer). A partir desta altura a minha memória vai falhando. As contrações foram progredindo, até se tornarem insuportáveis (na minha escala de tolerância à dor). 24horas depois do primeiro comprimido, decidi pedir uma epidural. A primeira dose de epidural contém um opioide que provoca bastante comichão. Ora, comichão havia sido o principal sintoma da minha colestase. Este sintoma, juntamente com todo o cansaço acumulado ao longo das últimas horas, resultou num pequenino episódio de auto-comiseração, com direito a bastantes lágrimas gordas. O Jaime tentava acalmar-me com massagens e festinhas, que eu passei também a recusar porque qualquer toque se tornara repulsivo. Só a queria dali para fora, mas quanto mais tempo poderia demorar? Estava desanimada. Às nove da noite a Mariana voltou a visitar-nos. Eu exprimi o meu medo de que a indução se prolongasse indefinidamente e, sem nunca referir a palavra cesariana, a mesma como que se sentou à mesa da nossa conversa. A Mariana explicou-me que um dos caminhos possíveis dali para a frente poderia ser o de me romper as águas artificialmente, tentando acelerar o trabalho de parto, mas que isso nos colocaria um tic-tac com um limite temporal no horizonte - se a dilatação não progredisse rápido o suficiente, ficaríamos sem outra hipótese que não partir, então, para uma cesariana. As palavras dela foram mais ou menos estas: “para te descansar, sabe que essa hipótese está sempre em cima da mesa, e que a qualquer momento podes pedi-la. Sabendo isto, não vejo por que motivo a indução se prolongue por muito mais tempo; a bebé está bastante baixa e não é uma bebé grande.” Foram estas palavras que me deram ânimo para continuar; decidi, em conjunto com o Jaime, esperar que o meu corpo continuasse a decidir a que velocidade queria progredir. Horas depois, já no dia 6 de Agosto, às quatro da madrugada e depois de um reforço de epidural, acordei com a camisa de noite ensopada e uma enfermeira confirmou que as águas me haviam rebentado. Aquilo que a Mariana tinha previsto estava a acontecer. Senti uma onda de motivação voltar; agora não podia faltar muito mais. A dilatação havia evoluído e estava já próxima dos 6 dedos. Por entre reforços de epidural e sonos intranquilos, a Mariana apareceu; às oito da manhã fez-me um último toque e disse-nos aquilo que mais desejávamos ouvir: a dilatação estava completa. Pediu-me que tentasse fazer algum movimento em pé, para ajudar a bebé a descer ainda mais, e, antes de sair do quarto, avisou-me de que era possível que ouvisse um ‘ploc’ durante esses mesmos movimentos, porque as águas não teriam rompido totalmente ainda. No primeiro squat que fiz, com a ajuda do Jaime que me carregava pelos braços, ouvimos ambos o grande e surpreendente ‘ploc’, e um rio de água inundou o chão. Olhámos um para o outro; a Mariana tinha previsto tudo direitinho mais uma vez. Rimo-nos um bocado e chamámo-la. Ela ficou num silêncio bonito a olhar para a minha barriga, em pé, e explicou-me que observava as minhas contrações. Sem me tocar, sem me mexer.. só olhar.. algo que percebi ser muito comum na Mariana. Era como se eu fosse a comandante daquela viagem, e ela apenas uma observadora passiva, que no entanto me ia guiando, como um GPS que indica o caminho ao condutor que o percorre.
Às 10.50h da manhã a Mariana voltou a entrar no quarto. Vinha de um outro parto, que havia corrido bem :). “Houve uma outra grávida que completou a dilatação exatamente ao mesmo tempo que tu, mas a bebé dela estava mais baixa. Vamos indo para a sala de partos? Tragam o que precisarem”. “O que precisarmos?”, perguntou o Jaime. “Talvez um telemóvel para tirarem uma fotografia, como preferirem”, disse a Mariana. E fomos andando pelo corredor por onde havíamos entrado, cerca de 42 horas antes. Já na sala de partos, uma enfermeira brincou com o facto de termos o mesmo nome e apelido; disse-me que também ela havia parido ali. A Mariana pediu a uma outra funcionária que trouxessem um banco de parto e, ao lado do mesmo, colocou um colchão, caso eu preferisse ficar em quatro apoios. Sentei-me no banco, com o Jaime por detrás de mim, aos meus ombros, a sussurrar-me palavras de força e amor. No chão, a Mariana depositou um espelho, que me permitia ir vendo tudo o que estava a acontecer. E, sábia, disse assim: “olha ali, não é a cabeça da tua bebé? Vai ser bem mais rápido do que eu pensava”. Eram 11.05h da manhã. Puxei uma primeira vez; à minha volta, as palavras encorajadoras de todos: “está quase, isso!, continua, assim mesmo”. Dentro de mim, a primeira confrontação com a dificuldade do período expulsivo: eu não ia conseguir. Disse-o em voz alta várias vezes: “não vou conseguir, não aguento mais”. Uns minutos depois, um outro obstetra e uma outra enfermeira entraram na sala. Os cinco - estes, a Mariana, o Jaime e a enfermeira Inês - todos num uníssono motivacional: “tu consegues, está quase, uma mulher de norte, claro que consegues, força”. Como se estivesse num filme. Num momento de desespero disse à Mariana que ela poderia fazer o que achasse melhor - eu achava mesmo que não ia conseguir. Ela nunca mo chegou a dizer - só o soube mais tarde, já depois do nascimento da Carmo -, mas nas duas últimas contrações, o ritmo cardíaco da bebé havia descido, não chegando a recuperar, pelo que ela me perguntou se poderia usar uma ventosa. Era tudo o que eu queria: ajuda. E assim foi: mais uma contração, a ajuda da ventosa, que nem senti, e às 11.25h tinha a minha filha nos braços. Ouvi a Mariana dizer: “já está, parabéns”, enquanto me a entregava. E só de escrever isto arrepio-me. A minha filha era real, existia, era perfeita e chorava. Fizemos pele com pele algum tempo. A Mariana avisou-me do que iria sentir quando a placenta saísse (“uma impressão que não tem nada a ver com a da saída da bebé”); e assim foi, a tal impressão. Mostrou-nos o orgão que o meu corpo havia formado para ajudar a manter a nossa filha viva. Passaram-ma para uma maca, com a bebé ainda no meu peito; havia feito uma muito pequenina laceração, de grau 1, cujos 2 pontos dados pela Mariana eu nem senti. Levaram-nos de volta para o quarto - o quarto de onde tínhamos saído minutos antes, quando eramos apenas nós os dois, e onde voltávamos agora a três - pais, para sempre.
Como podemos agradecer a alguém que nos ajudou a trazer a pessoa mais preciosa da nossa vida ao mundo? É uma missão quase impossível, mas tentaremos.
À Mariana, por todo o profissionalismo, carinho, paciência, e tudo o mais que não cabe em palavras, o nosso mais profundo obrigada; talvez diga muito, se não tudo, que quatro horas depois do parto eu estivesse a tomar banho sozinha e a fazer uma máscara no cabelo enquanto pensava na melhor altura para ir ao segundo filho :D
A todos os profissionais da CLISA - enfermeiras, anestesistas, obstetras, outros funcionários -, por nos terem tratado com tanto amor e respeito ao longo da nossa estadia, estar-vos-emos para sempre gratos.
Tivemos alta no Domingo, dia 8 de Agosto, e despedimo-nos de todos com um “até daqui a dois anos”, entre alguns risos e algumas lágrimas (*hormonas*).